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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Entrevista ponto-com

Rose: O seu nome, Marcelo Canellas, está ligado a grandes reportagens de conteúdo humano. Como repórter especial da Rede Globo há 18 anos, você já teve o trabalho reconhecido e premiado várias vezes. O que motivou você a seguir por este caminho do jornalismo social?

Marcelo Canellas: Sempre acreditei ser impossível separar o cidadão do jornalista. Portanto, tudo o que me incomoda como cidadão me incomoda também como jornalista. E é justo que minhas preocupações de cidadão virem substância informativa, reportagem, notícia. Cláudio Abramo, num artigo famoso, disse que a ética do marceneiro é igual à do jornalista. Quer dizer, ética é uma só: se você não engana e não mente como pessoa, não pode mentir nem enganar como jornalista. Vivendo no Brasil, e vendo as contradições da sociedade brasileira, não há como, do ponto de vista ético, não fazer disso tudo matéria prima do jornalismo.

Rose: Na série de reportagens sobre a Fome, uma das mais premiadas do Jornal Nacional, você viu de perto o drama vivido por pessoas que não têm o que comer. Diante de situações como esta é difícil para o jornalista não se envolver emocionalmente. Qual foi o momento mais difícil que você enfrentou durante a execução deste trabalho? E o que você aprendeu de mais importante?

Marcelo Canellas: O momento mais difícil foi o encontro de minha equipe com uma lavadeira de um lugarejo no interior do município de Araçuaí, no Vale do Jequetinhonha, em Minas Gerais. Ela estava com anemia profunda e tivemos muito medo de que fosse morrer a qualquer momento. Fizemos uma vaquinha para comprar víveres e deixar em sua casa. Depois chamamos uma ambulância para que ela recebesse cuidados médicos. Enquanto esperávamos, conversamos bastante; e dessa conversa resultou uma das mais emocionantes reportagens que fiz na vida. Nunca esqueci o nome dela: Maria Rita Costa Mendes. Continuamos, nas semanas seguintes, a percorrer o Brasil em busca de novas histórias para a nossa reportagem. Mas o desconforto da conversa com Maria Rita não nos abandonou um instante sequer. Quinze dias depois ela viria morrer em decorrência da desnutrição aguda. Foi um baque para todos nós, e também uma lição de humildade: por mais força que tenha, o jornalismo não consegue mudar a realidade brasileira. Nosso papel é jogar uma luz sobre temas que estão obscurecidos pelo desconhecimento ou pelo olhar viciado, cansado, que não consegue enxergar nem mesmo fatos contundentes. Entretanto, para mudar a realidade, só com a ação política da sociedade organizada.

Rose: Você é gaúcho de Passo Fundo (RS), mora em Brasília e tem viajado muito pelo país nestes seus 20 anos de jornalismo. Pode-se dizer que você conhece bem o Brasil?

Marcelo Canellas: Seria um tanto pretensioso dizer que conheço bem o Brasil, apesar de ter esquadrinhado, ao longo de 20 anos, todos os 27 estados e o Distrito Federal, onde moro. Mas posso dizer, com segurança, que conheci bem e aprendi a respeitar e a admirar o engenho criativo do povo brasileiro, manifesto na sua cultura e no seu modo de enfrentar as adversidades.

Rose: O Globo Repórter mostrou há pouco tempo uma sucessão de histórias de brasileiros que não têm uma relação formal com o estado, ou seja, não possuem registro de nascimento. Quando você retorna de uma série de reportagens como esta ou outras feitas em lugares distantes, como se sente olhando de volta para a “civilização”? Você mesmo traz para si novas reflexões?

Marcelo Canellas: É claro que a gente acaba se transformando um pouco a cada nova reportagem. Sou sempre um novo repórter sempre que volto do “Brasil profundo”. E acredito que vou ficando também uma pessoa melhor a cada retorno.

Rose: Ao deixar de lado grandes furos jornalísticos e optar por uma matéria-prima mais humana nas reportagens, dando voz a pessoas comuns, muitas vezes você não se considera um jornalista nadando contra a corrente?

Marcelo Canellas: É claro que não sou contra o furo. Muito ao contrário, o furo de reportagem deve ser perseguido por todo jornalista. O que não quer dizer que assuntos considerados “batidos” não tenham a sua importância na agenda de cobertura. Um assunto só é “batido” quando é enfocado sob os mesmos clichês enfadonhos de sempre. Ao buscar um viés criativo, o jornalismo é capaz de surpreender o leitor, o ouvinte ou o telespectador, qualquer que seja o tema abordado. No que diz respeito à cesta de notícias hegemônicas da agenda dos meios de comunicação, às vezes me sinto, sim, nadando contra a corrente da mesmice. Mas posso garantir que estou bem acompanhado. Existem muitos repórteres, de todas as mídias, que, felizmente, se preocupam em retratar as contradições da sociedade brasileira.

Rose: Você fica plenamente satisfeito com o resultado de seu trabalho? Que críticas faz a si mesmo em particular?

Marcelo Canellas: Costumo ser bem rigoroso comigo mesmo. Mas nem sempre acerto a mão. Além disso, reconheço algumas limitações. Por exemplo, não sou muito bom nas transmissões ao vivo. Como gosto de escrever, e sou detalhista em relação à escolha das palavras, nunca fico satisfeito com minhas intervenções ao vivo.

Rose: Nas palestras para estudantes de jornalismo você sempre enfatiza a importância do trabalho em equipe (indispensável não só na TV), da humildade intelectual e da ética profissional. Você considera estes pilares fundamentais para a formação de um bom jornalista? E o que mais você acrescentaria como primordial para exercer a profissão?

Marcelo Canellas: Sem dúvida. São os pilares da profissão. Além disso, eu acrescentaria o rigor com a precisão da informação, o que depende sempre de checagem (e de re-checagem) obstinada.

Rose: Lembro de uma crônica sua que fazia uma comparação entre o passado e o presente. E no final do texto, ao concluir que antigamente tudo era mais demorado e difícil, você perguntava “então por que engolimos o almoço? Por que estamos sempre atrasados? Por que ninguém mais bota cadeiras na calçada? Alguém pode me explicar onde foi parar o tempo que ganhamos?” Nesta correria que, sabemos, é a vida de jornalista você consegue achar tempo para o lazer? E nestas horas o que você gosta de fazer?

Marcelo Canellas: É claro que acho tempo para mim, para a minha família e para os meus amigos. A vida seria muito chata se ficasse restrita ao trabalho. Gosto de brincar com meus filhos, de sair com os amigos, de assistir aos jogos do Internacional de Porto Alegre (meu time do coração) na televisão, e de jogar minha pelada semanal. Gosto de cuidar de meu sítio nos arredores de Brasília onde planto feijão, milho, mandioca, hortaliças e crio galinhas caipiras.

Rose: Qual o tipo de música que você gosta de ouvir?

Marcelo Canellas: Música Popular Brasileira e Blues são minhas preferências.

Rose: E no cinema, quais suas preferências?

Marcelo Canellas: Assisto de tudo. De filmes infantis, com os meus filhos, até comédias românticas. Ir ao cinema é sempre um grande programa, mesmo que o filme seja ruim. Mas minha preferência é o cinema italiano: Felini, Irmãos Tavianni, Visconti, De Sica, etc.. Um dos meus preferidos é “O Baile”, de Ettore Scola, que conseguiu a proeza de realizar um filme fascinante sem um único diálogo sequer.

Rose: Sem falar em jornais e revistas, que tipo de leitura te atrai? Qual livro ou escritor você destacaria como essencial na sua vida?

Marcelo Canellas: Poesia: Mario Quintana, Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, José Paulo Paes.
Prosa: Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Machado de Assis, Raduan Nassar, Guimarães Rosa, Rubem Braga, Gabriel García Márquez, Ernesto Sábato, Dino Buzzatti, Marcel Proust.

Rose: Há iniciativas interessantes no país para incentivar o hábito da leitura que, me parece, não são muito utilizadas pela população de baixa renda. Um bom exemplo disso são as bibliotecas móveis que percorrem bairros das cidades e oferecem um acervo invejável. Outro dia soube que um menor entrou armado em uma dessas bibliotecas para roubar um notebook. Os livros, entretanto, permaneceram intactos. Pode-se dizer que este é o retrato de um país de várias “fomes”? A seu ver, como o brasileiro se alimenta espiritual e intelectualmente?

Marcelo Canellas: Será impossível oferecer essa “alimentação espiritual” sem, antes, oferecer escola pública de qualidade.

Rose: O jornalista hoje não consegue mais trabalhar sem tecnologia? Você acha que a Internet está “roubando” o público da Televisão?

Marcelo Canellas: É claro que está. As novas mídias são uma realidade. E a tecnologia é uma ferramenta fantástica, cada vez mais barata e mais acessível. Por isso mesmo, o que vai fazer a diferença são as pessoas. Tecnologia na mão de gente despreparada é um instrumento estéril.

Rose: Para você o que é a televisão? De que maneiras o trabalho da imprensa cria (ou reproduz) realidades que vão pautar a vida das pessoas?

Marcelo Canellas: A televisão é apenas uma ferramenta. Não cria nada. Quem cria são as pessoas. Só jornalistas bem preparados e bem formados conseguem exercer nosso ofício em sua plenitude, qualquer que seja a mídia disponível.


*Entrevista originalmente publicada em agosto de 2008.

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